03 outubro, 2017

REFLEXÕES DE UMA GAROTA SUICIDA

Sempre me preocupei em morrer e continuar com meu rosto sem marcas. Pensava nos métodos da morte: nada de pontes, cordas, ou me jogar na frente de um carro. 

A primeira vez que tentei suicídio, foi ingerindo vários frascos de tinta guache. Naquela ocasião, recebi uma bronca da minha avó. Como tinha 8 anos, o fato pareceu brincadeira de criança, mas naquela idade, já achava que a vida não tinha muito sentido...

Depois, aos 13 anos, o motivo foi depois de ouvir a minha mãe falar que seus filhos eram um problema na vida dela. Tomei água sanitária, detergente, mas nada aconteceu. Nem mesmo mal estar.

A terceira vez, eu já tinha 15 anos.

Me apaixonei por um garoto. Mas ele não me dava muita atenção. Então, tive a ideia de ingeri todos os remédios da minha avó: remédios para o coração, pressão entre outros; tomei todos.

Fui a escola, e, a noite, não tive nenhum sintoma.

(Foto: Pixabay)


A quarta vez, foi diante um término de relacionamento de 4 anos. Eu já era adulta e já havia passado 23 outonos.

Entrei em desespero e no meu trabalho, comprei e ingeri todos os remédios tarja preta que pude. Tive convulsões mas escapei sem sequelas.

A quinta vez, fui para uma ilha distante. Mais uma vez fiz uso de medicamento controlado. Enquanto tinha convulsões, a água cobria o meu corpo, foi quando um pescador me encontrou quase sem vida.

Num outro momento, por conta de uma traição, cortei meus pulsos e meu pescoço. Meu sobrinho me achou no quarto desmaiada. A data era 5 de outubro de 2006, dia que ele fazia aniversario.

A ultima vez, também foi em um 5 de outubro, mas de 2014. Eu estava num barco fugindo do meu ex-namorado, o mesmo que havia me traído. No impulso, me joguei no mar.

Após tantas tentativas sem sucesso e uma fala de desdém do meu então namorado, pude refletir. Ele Disse: 

-Vá agora e se mate. Vou ao seu enterro, choro dois dias e depois continuo minha vida e todos saberão que você é louca, fraca.
Daí por diante desisti de morrer. Dá muito trabalho (risos).



04 junho, 2017

O DIABO QUANDO NÃO VEM MANDA O SECRETÁRIO

Sim, o diabo existe e nem sempre cobra caro por favores. Neste caso, ele envia seus secretários. 

Para mim, o auxiliar do capeta apareceu por volta das 22h de uma segunda-feira, no Posto BR do bairro da Pituba, em Salvador. Terra de todos os santos e de anjos caídos do céu também.

Após algumas tentativas de ligar o meu carro, que apresentava  uma pane elétrica, recebi o auxílio da minha irmã e do meu cunhado. Ao tentar realizar a transferência de energia de uma bateria para outra, não tive sucesso. 

Eis que nesse momento surge, do nada, um homem alto, cerca de 1.90m, mulato e sujo de óleo, vestido com um guarda-pó de mecânico, o qual trazia no bolso superior esquerdo a marca de uma empresa de baterias. Nada mais oportuno, não é? Não!

O homem já chegou cheio de prestimosidade, se dispondo a ajudar. Eu logo desconfiei de tamanha bondade. Logo eu, nascido e criado na Península de Itapagipe, pra ser mais preciso, no "pacífico" bairro do Uruguai, e tendo convivido com bêbados, pequenos e médios traficantes e seus clientes: sacizeiros oportunistas, logo desconfiei. 

Mas, diante da situação resolvi deixar o homem nos ajudar, mesmo temeroso com o ônus a ser cobrado depois. 

Após realizar um procedimento que eu já conhecia, o homem conseguiu fazer o carro funcionar. 

E logo em seguida veio a conta: "costumo  cobrar R$ 80 por esse serviço, mas só te cobrarei R$ 40", disse o cheio de lodo.

Costumo ser justo com o labor alheio. Por isso, ainda que não tenhamos combinado preço pelo favor que virou serviço, achei merecido dar a ele R$ 20, pois o que ele fez não foi mais do que tirar a bateria do carro da minha irmã ainda em funcionamento e colocar no meu, uma vez que a minha não estava carregando através do meu alternador. 

Com a minha bateria funcionando no outro carro, o problema estava resolvido. Mas tudo isso não levou mais que 20 minutos. 

O pior era que, nem eu nem minha irmã e cunhado tínhamos sequer R$ 15, ainda mais R$ 40 como impôs o ajudante do capiroto.



Mesmo assim, fui até a loja de conveniência do Posto na esperança de conseguir sacar o dinheiro e nos livrarmos do cara, mas no local não havia caixa 24H.

Tentei explicar ao homem que tudo conseguimos arrecadar foram R$ 12. Mas ele estava irredutível e não queria receber o dinheiro; só repetia: "o valor é 40 reais! 

E essa cantilena já estava me deixando endiabrado. Mas ele continuava repetindo que o carro era nosso e que ele não tinha culpa de o veículo quebrar.

Apaziguador, meu cunhado saiu a caminhar em busca de um caixa 24H. Neste momento, minha irmã surta e pede pra ele voltar, sem sucesso. Iniciava ali a nossa baixaria em plena Avenida Manoel Dias da Silva.  

Eu já não sabia o que fazer. Foi quando minha irmã colocou os R$ 12 no chão, sob uma pedra, avisando ao filhote de cruz credo, que ainda resmungava e relutava em receber o seu pagamento.

Foi aí que entramos no carro e saímos. Ao olharmos pelo retrovisor vimos que logo após a nossa partida o cracudo correu em direção ao dinheiro.

Nesse dia, me lembrei do que disse o mestre Jackson do Pandeiro em uma das suas músicas: "eu não vou na onda nem no conto do vigário, pois o diabo quando não vem manda o secretário".
















27 maio, 2017

FOBIA POR SOLIDÃO

Quem tem pavor da solidão, por mais que tente se mostrar sereno, deixa claro o quanto a sua resiliência é falha ao demonstrar insegurança com o seu futuro no primeiro término de relacionamento. 

Apesar de essas pessoas dizerem que não têm medo de terminar suas vidas sozinhas, e que pouco se importam em ter filhos, pois eles não são certeza de companhia na velhice, são as que mais temem caminharem sozinhas nos últimos anos da sua existência. E lhe dão conselhos como se estivessem prontas; sem nada a aprender ou compartilhar, como um ser hermético, o qual traz em sua bagagem a experiência de muitas vidas, cumprindo a sua última viagem neste plano. Mas, não é nada disso. Talvez para poder ressoar sobre elas mesmas o que não praticam em suas próprias vidas. 

A maioria das pessoas acredita que ser feliz é ter um relacionamento, mas estar acompanhado não é sinônimo de felicidade. Ter um companheiro, ou necessitar da companhia de outras pessoas não garante alegria. Pessoas podem ser solitárias, apesar de estarem rodeadas de amigos. Maturidade é entender que a solidão pode ser algo positivo, mas um relacionamento vazio com certeza não é.


Estar sem uma companhia afetiva por um tempo e ter esta condição como um momento para refletir sobre a relação anterior, os motivos que levaram ao término e, quem sabe, compreender comportamentos condenáveis do ponto de vista moral da pessoa que fez parte dos seus dias, não é falta de amor próprio, pelo contrário, é a prova de o quanto você já se basta. 

Ausência de amor próprio é usar como muleta afetiva o primeiro que se conhece ao dobrar a esquina, ou numa mesa de bar. Essa fase deve ser aproveitada para conhecermos nossos limites, nos preservar e, nos dias em que a solidão for insuportável, lembrarmos de valorizar o quanto uma boa companhia nos nos transbordou, porque completo já somos. De saldo, só nos restará aprender com os erros para não falharmos novamente em um novo relacionamento que estar por vir em nossas vidas.

11 maio, 2017

A MORTE DO SOL

(Foto: Wagner Ferreira)

E lá se vai o Sol mais uma vez. E com ele, a esperança da sua volta. Seu retorno é quase certo diante da nossa pequeníssima fração de existência na Terra. A não ser pela estimativa de seu apagar, prevista para daqui a 35 mil anos, segundo cientistas. Nos seus últimos anos de vida, ele irá aumentar de tamanho, e, possivelmente, a vida na Terra deixará de existir - pelo menos como a conhecemos hoje - já que o calor aumentará consideravelmente com a sua aproximação do planeta. 

Então, pela ameaça distante da morte do Sol, celebremos o nosso Astro Rei, não somente como símbolo de energia e motivação para o começo de um novo dia, mas também pela esperança de retorno de tudo aquilo que já nos fez bem na vida!

10 maio, 2017

ENSINAMENTOS DE UMA GAROTA IMPULSIVA

Uma menina me ensinou que era preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Mais tarde, descobri que, para ela, o amanhã era muito tarde, o hoje é ontem e o ontem não interessa.

Como eu, ela se utilizava daqueles que conhecia para curar, momentaneamente, a dor e a solidão. Para isso, ingeríamos doses cavalares de remédios doces e viciantes no início mas, ao passar o efeito, tínhamos exauridas as nossas forças e minadas as nossas já baixas autoestimas, o que só nos deixava mais vazios e sós do que antes.

A via prática para preencher essa lacuna eram nossos corpos, que depois de anos de repressão, sobretudo sobre a mulher, o que antes era preservado para ser desejado e conquistado com os devidos méritos, passou a ser banalizado em nome do "amor livre", do, "meu corpo minhas regras", frase adotada pela menina impulsiva como justificativa das suas "medidas antidepressivas" .

Mas regras não são estanques. Elas são criadas por alguém, ou grupos, interessados em controlar, reprimir ou liberar determinada situação.

À medida em que as regras são claras, que todas as cartas são colocadas à mesa, sabe-se em qual jogo se está entrando, ou, no caso, relacionamento. Estar ciente dos limites impostos a cada um a fim de não se avançar muito sobre a visão de mundo do outro é um dos motivos dessa convenção.

Cada um se relaciona com quem quer e da forma que quiser. Mas, a partir que se vende um discurso falso, com o intuito de somente ser aceito pelo outro, mesmo sabendo que aquela conta será cobrada mais tarde, isso se chama, no mínimo, fraude.


A partir do momento que digo ao meu parceiro que aceito determinados comportamentos estou colocando ele a par de quem eu sou. Cabe a ele avaliar se os meus valores não ferirão os dele, e vice-versa, para que com isso se pense num futuro a dois sem surpresas desagradáveis.

Dessa forma, mesmo depois de um término de relacionamento, após muitas queixas da nossa menina doutrinadora de falta de reciprocidade do seu parceiro, afeto e companheirismo, ela sai da relação por cima, cheia de certeza que fez a coisa certa, pois seus reclames não foram atendidos.

Justo! Cabe ao perdedor reconhecer que foi negligente e não soube manter a chama da paixão acesa de uma pessoa que parecia querer tão pouco do outro.

Mas os dias seguintes mostraram que não foi bem assim. Lembra daquela imagem de donzela, adepta, em parte, de valores tradicionais que seduzem o mais seguro dos homens? Nada disso era real.

A garotinha, que se preocupava com a sua reputação e sobre o que seus pais iriam pensar dela, ao contrário do que acredita, ela subestimou a minha sagacidade ao vender a imagem que mais me agradava e não a que era real. E começa, diante de dos meus olhos, a se comportar como alguém que você não acredita que conviveu por um longo período. A ficha cai de imediato e aquele homem é tomado por um sentimento de raiva, frustração e desprezo por quem tanto admirava, mesmo sem externar a ela tal admiração.

Essa pessoa passa a se comportar como um animal que fora enjaulado há anos, privado dos seus instintos mais primitivos, e quando solto, como fera desembestada, ataca a primeira presa que lhe aparece. Não há critérios de seleção. A fome é gritante. "Foi 1 ano comendo ração, eu quero é sentir o sangue da carne escorrer entre minhas presas e o suco do prazer tomar o meu corpo trêmulo", pensa ela.

Esta mesma menina, que quis doutrinar-me ao seu modo, é expert na arte do disfarce. Sabe usar como poucos suas expressões e tem uma frieza de espantar até o mais gelado dos predadores quando aguardam por horas imóvel o momento certo de atacar a sua presa, independentemente do ambiente hostil à sua volta.

Ela se queixa de falta de amor, afeto e morte gradual do sentimento que dizia sentir por mim. OK. Eis um motivo nobre para a sua insatisfação. Afinal, todos querem amar e ser amados, cada um à sua maneira de dar e receber amor. Uns mais pegajosos, outros através de gestos ou palavras como "eu te amo meu amor", "bom dia minha vida", outrem guardando estas expressões por serem mais cautelosos, pois já foram vítimas de fraudes parecidas como a imputada a ele por essa menina.

O animal está prestes a ter um colapso nervoso. Lembremos que foi 1 ano "enjaulado", mantido, segundo ele mesmo, à dieta regrada. É urgente a tomada de atitude. Mas para isso, é preciso um plano de ação. Voltar à selva depois de tanto tempo requer adaptação. A fera ainda não está pronta para retorno imediato e pode ser alvo fácil de outros predadores. 
A besta sairá faminta, mas tem que atacar presas mais fáceis no início, de preferência, já deixadas combalidas à beira da estrada para ela se alimentar.

Liberta das grades que a aprisionavam, a fome foi saciada. Talvez não tenha sido o manjar esperado, mas satisfez a curiosidade, fez a fera-menina sair da rotina. Já a sensação de ressaca moral, esta é relativa. Se me importo com o sentimento do outro deixado para trás me colocando na mesma situação de frustração que ele se encontra devidos às minhas falsas promessas, posso sentir algum desconforto, mas se tenho autopiedade, condicionando tal ação como a paz do meu espírito selvagem, terei essa culpa diminuída.

A rotina também não foi de toda ruim. Ela fará falta à menina impetuosa. Lembranças de marcas de pés molhados do seu companheiro no tapete do banheiro ou desafios diários à sua inteligência única ficarão, cada vez mais distantes, à medida que ela recorrer a mais um novo alimento que irá, não só saciar sua fome momentânea de carinhos e afetos circunstanciais, mas protelará o seu maior medo: a solidão, que a deixa infeliz e a faz se sentir inferior, ainda que para ter isso precise se colocar numa condição de acesso fácil aos acalentadores de carentes de plantão.    

02 maio, 2017

O CORPO

Mesmo diante de tantas evidências, insistimos em ser céticos e dar esperança à vida. Evitamos repetir equívocos anteriores e formar juízos, ainda que haja despojos espalhados em cenários antes vividos pelos dois.

A cada dia após o anúncio do desaparecimento e possível morte, esta fica cada vez mais certa. Mas, ainda que a frieza das evidências dispostas dentro do contexto nos faça perder a esperança na vida, e, mais ainda, na ressurreição, seremos sempre otimistas com quem amamos. 

Diante disso, ficamos a esperar o rolar da pedra para que essa pessoa venha ao nosso encontro. Só que não foi desta vez que o milagre aconteceu. O corpo já havia sido encontrado por alguém, que àquela altura, também já o conhecia em detalhes. 


25 abril, 2017

ESPÍRITO LIVRE, ALMA APRISIONADA

Para Nietzsche, "todo homem seleto busca instintivamente seu castelo e seu recolhimento, onde ele esteja a salvo da massa, da multidão, da maioria, onde lhe seja permitido, como sua exceção, esquecer da regra." Claro que, para esta premissa, deve-se dar a ressalva no caso de o homem em questão ser impelido por um instinto ainda mais forte do que essa regra. A observação foi atentada pelo próprio filósofo em sua primeira obra da sua fase "destrutiva", Além do Bem e do Mal (1886).

Nietzsche entende que, o homem que nunca oscilou ocasionalmente "entre todas as cores da aflição", ruborizado e pálido de asco, fastio, compaixão, abatimento, isolamento, este homem não pode ser considerado de gosto superior. Nietzsche supõe, porém, que caso ele não carregue todo esse fardo e essa repugnância voluntariamente, se esquive deles, permaneça quieto e orgulhoso, escondido em seu castelo, então uma coisa é certa: ele não é feito, não é predestinado para o conhecimento. Pois se fosse, um dia, ele teria de dizer a si próprio:  "Que o diabo leve meu bom gosto! A regra é mais interessante do que a exceção - do que eu, a exceção!

Às almas vulgares, a única via para tocarem de leve naquilo que é a honestidade é a do cinismo, segundo Nietzsche. Já o homem superior, “este deve aguçar os seus ouvidos para todo o cinismo grosseiro ou refinado”, e felicitar-se a cada vez que, precisamente, diante dele, falar, desde aquele ‘sem noção’ despudorado até a mais erudita das pessoas. 

_________________________________________________________________________

Já que estou sendo tomado por Nietzsche, tentarei copiá-lo na sua forma de escrever: sairei do assunto estrito acima, mas não fugirei completamente. Estarei aqui, aprisionado em meus carmas, frustrações, traumas e idiossincrasias, por vezes munições para convicções equivocadas, por vezes salvadoras; safas!

Bem, vamos lá: 

Enquanto somos jovens, - eis aí uma inverdade absoluta, dita por uma alma velha e ranzinza, que já deve ter aportado uma centena de vezes neste mundo-vitrine de shopping center reencarnada em um corpo não mais juvenil e que evidencia, inclusive através das dores físicas, o velhinho casca grossa que há dentro de mim – (risos). 

Nietzsche diz que ainda veneramos e desprezamos sem aquela arte da nuance, que constitui o melhor ganho da vida e, como é justo, precisa-se pagar caro por ter atacado desse modo pessoas e coisas com um sim ou não. Por conta disso, talvez por ainda trazer comigo a ira, a indignação para com as injustiças, influenciado pelo falso poder que nos toma a fim de querer corrigir as mazelas do mundo, características da juventude, eu ainda pague caro pela minha sinceridade. 

Tudo está disposto para que o pior de todos os gostos, o gosto pelo incondicional, seja cruelmente enganado e abusado até que o homem aprenda a colocar alguma arte em seus sentimentos e, de preferência, ainda ousar na tentativa com o que é artificial: como fazem os verdadeiros artistas da vida. A cólera e a veneração, próprias da juventude, parecem não sossegar antes de falsear homens e coisas de tal modo que possam desafogar-se sobre eles: - a juventude já é em si algo falsificador e enganador. 

Mais tarde, quando uma alma jovem, torturada por grande número de desilusões, finalmente se volta desconfiada contra si própria, ainda ardente e selvagem, também em suas desconfianças e remorsos: como então ela se irrita, como ela se despedaça impacientemente, como ela se vinga por sua prolongada auto-obcecação, como se ela tivesse sido uma cegueira voluntária! 

Nessa transição, ela pune a si própria através da desconfiança para com o seu sentimento; tortura seu entusiasmo através da dúvida, até já sente a boa consciência como um perigo, uma autodissimulação e um cansaço da honestidade mais sutil, por assim dizer; e, sobretudo, toma partido, e partido por princípio, contra “a juventude”. - Uma década depois: e se compreende que mesmo tudo isso ainda – era juventude! (Nietzsche: Alma Livre)

A minha alma sempre foi livre, sempre quis ser, mas os labores da vida a fez tê-la contida, ou eu não estaria aqui para escrever este texto. O aprisionamento é fácil. No início, sempre haverá resistência, tentativa de fuga, mas com o tempo, você se acostuma, segue as regras e acaba esquecendo o quanto foi ou poderia ter sido livre. Cria-se uma carapaça, um tipo de armadura, que protege suas partes moles, literal e figuradamente. 

Se espera pouco do mundo e das pessoas. Inúmeras tentativas feitas, confianças foram quebradas. Mesmo assim, nossa alma livre, boa e justa, insiste em se manifestar nos momentos de brechas do seu encarceramento; dizer que ainda está ali, e ainda sonha com a sua liberdade. E isso é manifestado quando, me desconheço ao abrir concessões que não abriria na minha rotina de autoproteção, livrando-me de contratos, assinaturas, garantias, tendo como promessa somente a palavra daquele que apenas quer uma chance de provar que ainda existem pessoas boas, cada vez mais difíceis de se encontrar num mundo tão sombrio.

E esta pessoa me apareceu em meio à multidão. Ela aparentemente comum, mas avassaladoramente incomum, olhos grandes lua e sol em eclipse, tinham vida própria.

Resisti, tentei ser duro com ela, não sabendo que estava sendo ainda mais comigo. Durante esse tempo, a minha alma então aprisionada, parece ter desistido de se manifestar e se calou. Não deu ao menos seu último suspiro de esperança para que eu pudesse sair da minha armadura e amar verdadeiramente quem estava disposta a fazer o mesmo por mim. 

Continuo aprisionado. Agora não só de alma, mas de corpo e mente. Agora, a confusão toma conta de mim. Não sei quais serão os próximos passos da minha vida, ou até se haverá próximos. Estou no lodo (risos), como divertidamente ela se referiu de onde eu vim e encontrei, ainda que por hora, a fidalguia, a dúvida e o amor.



17 janeiro, 2017

MANOEL, O GUARDADOR DE AMIZADES

Em um mundo de pessoas tão competitivas, onde quase nada é feito sem se esperar algo em troca, com Manoel, um guardador de carros da região da Garibaldi, em Salvador, não é diferente.

Ele consegue amenizar uma relação comercial invasiva e com pouco ou nenhum retorno para os donos dos veículos agindo com gentileza ao abordar as pessoas que chegam para receber atendimento médico nas diversas clínicas localizadas no local.

Além de ganhar uns trocados com as gorjetas, Manoel é agraciado, todos os dias, com a ajuda de uma pequena cadela de patas e pelo curtos nas cores preta e branca e cauda enrolada. Trata-se de Pretinha, uma vira-lata que o acompanha nas abordagens. Desconfiada com os estranhos que se aproximam de Manoel, ela mantém sempre uma das orelhas em pé ao observar atenta a presteza do seu guardião ao orientar os motoristas que chegam para estacionar.

Elétrica, Pretinha sempre corre atrás das motos que passam, o que lhe dá muita sede. Mas água não é problema. A ativa cadela tem uma enorme "tigela" a seu dispor: um chafariz em frente ao Edifício Vitraux. 

Manoel ainda cuida de mais um cão, Nilris. Um idoso de idade indefinida que sofre de artrose.